Sobre


Exposição Coletiva
São Paulo, Brasil
18/06/2019 - 30/01/2020

O Tempo e a Arte Contemporânea

Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. Por isso os contemporâneos são raros. E por isso ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós.  (Giorgio Agamben)

1. Reflexões temporais sobre parcos vislumbres de futuro

É senso comum criticar a expressão “arte contemporânea”, já que todas as obras de arte são supostamente contemporâneas do tempo e da sociedade em que foram produzidas. A questão torna-se mais interessante quando percebemos que a obra de arte que impacta a história da humanidade em geral não foi devidamente apreciada em seu tempo e na sociedade em que foi produzida. E isso porque a questão do gosto, que define o juízo sobre uma obra de arte, tem uma forte relação com a familiaridade. O senso comum gosta do que lhe é familiar. O senso comum não gosta de se sentir desconfortável, prefere o gregário, a linguagem já conhecida, para uma comunicação básica, suficiente para a autopreservação. Também é senso comum que, em 2019, vivemos em uma sociedade que gosta muito do senso comum, e a dificuldade que se impõe é que o contemporâneo é justamente a experiência de viver em desconforto com seu tempo. Enquanto uma sociedade se mantém no senso comum, perde a chance de ser contemporânea de si mesma.

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (Agambem, p. 58)

Essa definição de Giorgio Agamben refere-se a pessoas e a como conduzem suas vidas. Poderia servir para obras de arte? Consideremos a hipótese (existencialista) de que viver é constituir uma obra de arte formada por instantes do cotidiano, uma obra-vida. Neste caso, cada um é o artista de sua própria obra. Consideremos agora a hipótese (neoconcreta) de que uma obra de arte é um “símile de um organismo vivo”. Neste caso, cada obra de arte é aberta, possui o tempo como uma de suas dimensões (assim como tem a cor e as dimensões espaciais) e constitui um espaço de interação com outros organismos vivos. Falta-lhe a capacidade de se reproduzir para ser viva? Realmente, só merece o estatuto de “símile de organismo vivo” a obra de arte que gera outras obras, incluindo obras em forma de pensamento ou atos cotidianos. Seguindo então a definição de Agambem, podemos concluir que tanto nossas vidas quanto obras de arte serão contemporâneas quando “aderirem a seu tempo e dele tomarem distâncias”.

A exposição Linha Atemporal, na Dan Galeria, é um espaço para o exercício da contemporaneidade, no qual os espectadores tomam distância do senso comum de nosso tempo. Retomando as experiências do final dos anos 1950 na arte brasileira, a exposição estabelece o convívio entre grandes nomes do Concretismo e Neoconcretismo e artistas de hoje, que se alojam naquela contemporaneidade e, desafiando a predileção atual pelo ordinário, escapam, possibilitando a vida no presente do intempestivo: abrem um túnel de acesso ao que permanece como projeto e projétil. Viver exige alguma ideia de futuro.

2. Lições concretas sobre contemporaneidade

A exaltação da abstração geométrica na premiação de obras da I Bienal de São Paulo, em 1951, estabelece pela primeira vez a recusa oficial da arte brasileira à figuração.  Max Bill, que recebe o prêmio máximo da bienal naquele ano pela Unidade Tripartite (hoje parte do acervo do MAC-USP), divulga no Brasil os fundamentos da arte concreta, conforme estabelecidos em 1930 por Theo van Doesburg:

“1 – A arte é universal; 2 – A obra de arte deve ser inteiramente concebida e formada pelo espírito  antes de sua execução. Ela não deve receber nada dos dados formais da natureza, nem da sensualidade, nem da sentimentalidade […]; 3 –  O quadro deve ser inteiramente construído com elementos puramente plásticos, isto é, planos e cores. Um elemento pictórico só significa a ‘si próprio’ e, consequentemente o quadro não tem outra significação que ‘ele mesmo’; 4º A construção do quadro, assim como seus elementos, deve ser simples e controlável visualmente; 5º A técnica deve ser mecânica, isto é, exata, antiimpressionista; 6º Esforço pela clareza absoluta”. (apud. Amaral, 1977)

Como a obra de Max Bill comprova, o mecanicismo proposto pelo manifesto de van Doesburg não implica em rigidez. A fita de Moebius, base para a construção da Unidade Tripartite, é dinâmica e, sensual em si mesma, intriga a mente, levando o corpo a se movimentar para abarcar múltiplas vistas da obra. Igualmente, a escultura de granito de Max Bill apresentada na exposição da Dan Galeria, com sua base arredondada, sugere a inusitada e provocativa possibilidade de uma pirâmide oscilatória. Reverbera assim a explosão de possibilidades advindas do início da década de 1950: abre-se, com a precisão da arte concreta, um caminho para a invenção do que nunca existiu no país. Várias obras da exposição explicitam um saudável vai-e-vem temporal ao unir o passado inquieto ao presente apático.

A clareza absoluta exigida pelo manifesto de Arte Concreta faz-se presente na pintura de Maurício Nogueira Lima, de 1956, que esteve na exposição Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, organizada por Aracy Amaral em 1977 no MAM-RJ. Sobre um fundo preto, Nogueira Lima espirala dois triângulos, gradativamente diminuindo-lhe as arestas e unindo vértices de figuras consecutivas. O resultado, planar, sugere a forma tridimensional de pirâmides. É interessante comparar o método sistemático de Nogueira Lima, que pintou o Triângulo Espiral à mão, com a obra Meta-aura, de Pascal Dombis, uma impressão sobre papel feita a partir de um algoritmo que, segundo o artista, “repete excessivamente” uma regra (por exemplo, traçar uma linha de certa forma). Feita entre 2015 e 2017, essa obra obedece a todos os princípios da arte concreta, ainda que o que tenha sido concebido antes de sua execução (o segundo ponto do manifesto da arte concreta) tenha sido o algoritmo e não o resultado visual. A natureza digital do trabalho de Dombis é quase imperceptível, o que nos faz pensar que a repetição excessiva não é prerrogativa da máquina. O comportamento humano é repetitivo.

A arte produzida a partir de programas de computadores fez parte das pesquisas do organizador do movimento da arte concreta em São Paulo, Waldemar Cordeiro. Fundador do Grupo Ruptura e autor do Manifesto Ruptura de 1952, Cordeiro foi também o introdutor no Brasil da arte feita com a ajuda de computadores, pesquisa que iniciou em 1968 e cujos resultados foram apresentados em 1971 na exposição Arteônica. Nos anos 1980, Miguel Chevalier embrenhou-se na arte produzida a partir de algoritmos, acompanhando a história da computação gráfica e dos jogos interativos digitais. Hoje Chevalier constrói ambientes imersivos, esculturas produzidas por impressoras 3D e imagens bidimensionais usando recursos digitais ou, como se diz em francês, numéricos.

A matemática é a base da repetição de módulos geométricos nas obras manualmente elaboradas por François Morellet que, nos anos 1950, entrou em contato com a arte concreta ao visitar o Brasil. Morellet elabora tramas bidimensionais que ficam à vontade tanto na contemporaneidade da arte concreta quanto na era das redes rizomáticas digitais. De fato, esta exposição provoca dúvidas frutíferas sobre o que é mecânico e o que é manual, como se o estado da tecnologia não bastasse para diferenciar o tempo de cada produção. A mesma precisão das linhas, desenhadas manualmente sobre fundo preto da pintura de Nogueira Lima, de 1956, ocorre na Constelação Estrutural de Josef Albers, de  1962, que, desafiando a mente do observador com um jogo de intersecção de linhas e de planos, abre mão da cor para enfatizar a linha, a estrutura da composição e a ilusão de tridimensionalidade. A paleta também é restrita nas obras selecionadas de Luiz Sacilotto – branco, preto e cinza — , porém, aqui, a cor é estrutura da composição por estabelecer a dinâmica de sobreposições de camadas opacas no plano bidimensional.

Antes de ser elemento composicional, a linha é assunto nas obras de Teodoro Dias. Sem outra pretensão do que colocar no mundo algo que antes não existia, Dias utiliza hoje a técnica da têmpera, frequente na arte brasileira dos anos 1950, compondo sequências de fios verticais. Vinculadas à produção imagética popular e nativa, as linhas atemporais dos tecelares de Lygia Pape remetem à possibilidade de uma época por vir, que sintetizará desenvolvimento e tradição, escola de Ulm e floresta.

Aluno de Josef Albers na Escola Superior da Forma de Ulm, na  Alemanha, Alexandre Wollner assimilou os fundamentos da arte concreta e aplicou-os em composições que serializam módulos geométricos de forma quase algorítmica, priorizando, ao longo de sua carreira, o design gráfico, e desenvolvendo logomarcas que todos conhecemos. É importante lembrar que na origem da arte concreta está o neoplasticismo de Mondrian e sua vontade de integração da arte na vida cotidiana. Assim, o movimento de Wollner rumo à comunicação visual não é espantoso. Outros artistas, como Almir Mavignier e Lygia Pape também se dedicaram ao design gráfico, aproximando, desta forma específica, a arte e a vida.

Geraldo de Barros, que fez parte do Grupo Ruptura, participa da exposição da Dan galeria com uma obra da série de laminados plásticos recortados, na qual o branco e as três cores primárias sugerem tridimensionalidade, como se a obra avançasse para o espaço real ocupado pelo espectador. Para ver mais obras dessa série misturadas ao cotidiano da cidade de São Paulo, vale a pena passar pela estação Clínicas do metrô, onde três desses grandes relevos coloridos acompanham há décadas as vidas dos que são passageiros.

Problematizar a diferença entre arte e vida foi outra forma de responder ao Neoplasticismo. Em 1959, os signatários do manifesto neoconcreto – Ferreira Gullar, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanúdis –, propuseram a concepção da obra de arte “como um quasi-corpus, um ser.” Para eles, seria preciso substituir a ideia de obra de arte como ontologicamente pertencente à categoria dos objetos ou das máquinas. A obra de arte neoconcreta aproximava-se da categoria dos organismos vivos. Em 2019, época em que os indivíduos parecem forçar a entrada na categoria dos objetos e das máquinas programadas por algoritmos, temos muito a aprender com artistas que se  opuseram à  “perigosa exacerbação racionalista” daqueles que “ainda veem o homem como uma máquina entre máquinas e procuram limitar a arte à expressão dessa realidade teórica.” (Manifesto Neoconcreto, 1959)

O que o Manifesto Neoconcreto propõe tem consequências importantíssimas tanto na arte brasileira quanto na possibilidade de constituição de um tempo futuro. Ao defender uma obra de arte próxima a um organismo vivo, o manifesto propicia o surgimento de obras de arte que interagem com outros organismos vivos, ou seja, obras de arte participativas, que convocam o corpo do espectador a agir ética e politicamente. Mais do que uma discussão estética, o manifesto neoconcreto é a semente artística de um projeto de país, o que ficará claro nos desdobramentos da arte brasileira do final dos anos 1960, em seu caráter de combate ao senso comum e ao condicionamento do pensamento ao status quo. Não seria esta a grande lição que os contemporâneos de 1959 enviam aos contemporâneos de 2019?

A passagem do Manifesto Neoconcreto ao envolvimento dos artistas em questões sociais iniciou-se com a ideia da obra de arte  como um “quasi-corpus”. Uma das formas de conferir-lhe características de organismo vivo foi libertar a obra da parede, de forma ainda mais radical do que criar, com linhas, a ilusão de tridimensionalidade. No Espaço Modulado no 6, de Lygia Clark, a moldura é utilizada como elemento composicional e não como fronteira entre a arte e o mundo. Deslocando a moldura, apresentando-a em uma parte para eliminá-la em outra, a obra deixa de estar delimitada a um espaço fictício e passa a ocupar o espaço cotidiano. A pintura n.9 de Hercules Barsotti parece inflar-se a ponto de gerar uma fenda amarela, em um esforço para sair do plano da parede. O pluriobjeto de Willys de Castro instala-se na parede ativamente,  dividindo o espaço com e do espectador, enquanto as esculturas de Amilcar de Castro recusam o pedestal para simplesmente existirem no chão, como organismos vivos. Ágeis para escapar do plano, as obras que Macaparana produz atualmente possuem a leveza lúdica dos organismos vivos que brincam com o tempo, cientes de que os instantes dançam sem traçarem uma linha reta. Na exposição, a obra de Macaparana é um desenho de linhas em uma dobradura do plano.

Remetendo a casulos ou colmeias, as obras de Sérgio Camargo conseguem unir a geometria com a organicidade dos aglomerados, como se tentassem dar à luz  um bicho, uma coisa nova que não existia no mundo, como os seres moles de Tony Cragg, que emanam o tempo lúdico e estendido da areia molhada pingada aos poucos, até crescer em escultura. No tempo, vivem também os origamis de LAb [au], um tempo digno, sem pressa. Essas máquinas, meio vivas, parecem recolher o tempo em suas abas coloridas, alimentando-se dele. Também viva na relação com o escoar dos instantes, a obra da dupla finlandesa Grönlund-Nisunen é uma ampulheta de água que oscila rente à parede, escorrendo os segundos de um lado para o outro.

 

3. Fortalecer o tempo

No mesmo ano em que Ferreira Gullar redigiu o Manifesto Neoconcreto, inventou o  Poema Enterrado, apresentado na exposição em sua versão de livro. Na versão instalativa, trata-se de uma sala em um sub-solo, no centro da qual há um cubo vermelho oco, de meio metro de aresta. Levantando-se esse cubo acha-se um cubo verde, com 30 centímetros de aresta. E embaixo do cubo verde há um cubo branco, sólido. Levantando-se a face do cubo branco que está voltada para o chão, lê-se “Rejuvenesça”.

Rejuvenescer relaciona-se ao retorno a um estado anterior, melhor, mais potente e esperançoso. A volta ao passado, portanto, não é necessariamente retrógrada. Ela pode ser  contemporaneamente inovadora quando o retorno é para um momento propulsor de invenções. Aliás, basta ler os jornais de 2019 para perceber que a tal “mudança de tudo o que está aí” não tem qualquer compromisso com a invenção do novo. Hélio Oiticica, um dos artistas que mais deu consequências aos fios lançados em várias direções pela arte concreta e neoconcreta no Brasil, escreveu que o novo permanece novo. O novo é dar existência a algo que antes não havia. Essa invenção do novo, no entanto, não pode surgir do nada. Ao contrário, inventar é abrir, no dia-a-dia, caminhos de concretização de futuros possíveis, que existem no estado de ainda não realizados, à nossa espera, como se fossem as esculturas de linhas finas de Jong Oh, penduradas por um fio, aguardando que nosso olhar as façam se corporificar, tornando-as bem definidas.

É como se do passado surgisse uma ideia, de presente, para o futuro.

Paula Braga, 2019


Exposição “Linha Atemporal”

Exposição “Linha Atemporal”


Exposição “Linha Atemporal” na Dan Galeria com texto curatorial de Paula Braga.