Maria Leontina - Poética e Metafísica

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Sobre


São Paulo, Brasil
26/10/2017 - 30/11/2017

Para além da discussão sobre concretos e neoconcretos, a arte brasileira dos anos 1950 provê um sofisticado material para o estudo do imbricamento entre arte e filosofia. Ainda que nas várias camadas de uma obra a ênfase na forma possa sobressair, o pensamento conceitual, seja voltado à metafísica, ou à ética, ou à própria forma sensível, é a base do fazer artístico.

A arte de Maria Leontina é um dos exemplos mais contundentes do arcabouço filosófico do construtivismo brasileiro e, refratário à querela entre paulistas e cariocas que ocupou tantas páginas da nossa historiografia da arte, só recentemente vem recebendo estudos teóricos que superam as limitações da geopolítica da crítica de arte.

Alternando sua base geográfica entre São Paulo e Rio de Janeiro, Leontina conduziu uma coerente pesquisa  formal que chegou à abstração geométrica por volta de 1955, por necessidade conceitual: pensando sobre a natureza do tempo, esta leitora de Santo Agostinho valeu-se das formas matemáticas para nos conduzir ao questionamento do Livro XI das Confissões: “O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não o sei.”

A exposição na Dan galeria, que marca o centenário de nascimento de Maria Leontina (1917-1984), percorre o enigma do tempo que a artista investigou desde ao menos 1954, e que motivaria também grande parte da produção de outros artistas brasileiros da vertente construtiva, como o Livro da criação (1959) e o Balé neoconcreto (1958) de Lygia Pape ou a cor-tempo de Hélio Oiticica (1959).

Antes de incluir a abstração geométrica em seu vocabulário formal, Leontina produziu nos anos 1940 retratos que aliam o traço expressionista à serenidade. Apesar do vigor das pinceladas e das linhas escuras marcando contornos, as figuras emanam a paz de quem saboreia o escoar vagaroso do tempo, com olhos baixos e pálpebras relaxadas. A paleta de azuis claros e brancos acalma os tons terrosos mesmo quando chegam ao vermelho, indicando que expressividade pode prescindir de angústia e que a quietude não é sinônimo de melancolia.

A temporalidade que perpassa a personalidade e a obra da artista é característica marcante tanto dos retratos quanto da produção subsequente, como bem articulado por Venâncio Filho, uma temporalidade que sugere “um solipsismo demorado e sem pressa, determinado por uma espécie de devaneio lúcido”, “um tempo que flui, quase imperceptível, quase imóvel.” O tempo nos retratos não é o tempo do movimento, mas o tempo interior da quietude.

As naturezas-mortas do final dos anos 1940 contrapõem-se à suave estabilidade dos retratos. Evocam Cézanne e a iminência de movimento nos tampos de mesa que se inclinam em direção ao plano da tela, como que despejando maçãs para fora do quadro. Planos prismáticos misturam figura e fundo, com linhas diagonais conduzindo o olhar pela tela toda. Com esforço consciente para parar o movimento dos olhos, o espectador consegue deter-se em um dos vários conjuntos de garrafas, isoladamente serenos, como se o espaço de Cézanne recebesse composições de Morandi salpicadamente. No todo instável, Leontina pousa o silêncio denso Morandiano.

Ainda na primeira fase figurativa, Leontina pinta uma série de Sant’Anas lendo com a menina Maria. Desafiando a iconologia, é grande a tentação de imaginar que nestas pinturas a avó de Cristo esteja mostrando imagens, e não letras, à filha. Leontina colecionava imagens de Sant’Ana e como observado por Herkenhoff nas pinturas da santa tanto os jogos planares quanto o tema da leitura anunciam a futura série “Páginas que, como argumentaremos, faz parte de uma sequência de obras sobre a percepção do tempo.

As pinturas de Sant’Ana ensinando Maria a ler apontam também para um sentido da maternidade como continuidade, passagem de vivências para o futuro, num escoar do tempo que faz o presente (e a arte) transmitir-se para o futuro. O tema da passagem do tempo é uma das possíveis leituras que esta exposição nos apresenta com obras das fases “Jogos e Enigmas” (iniciada por volta de 1954), “Da Paisagem e do Tempo”, “Episódios”, “Cenas”, “Narrativas” (todas iniciadas concomitantemente em torno de 1956), “Estandartes” (iniciados nos anos 1960) e das já mencionadas “Páginas” dos anos 1970, que é também a década dos “Umbrais/ Altares” e de “Os Reinos e as Vestes”. Os títulos conferidos pela artista a suas séries indicam o interesse pela passagem dos instantes, seja na forma da narrativa (cenas, episódios, páginas), seja nos mistérios ontológicos do tempo (jogos, enigmas), na relação entre tempo e espiritualidade (umbrais/ altares, os reinos e as vestes),  ou no tempo como movimento físico e social (estandartes).

Nas Confissões de Santo Agostinho o enigma do tempo é investigado a partir da impossibilidade de que algo que não existe possa estar presente. Sentimos de certa forma que existem três tempos – passado, presente e futuro – mas como pode o passado existir se ele já não é mais? Como pode o futuro existir se ele ainda não é? O que é o presente, se logo ele deixa de ser? Essas indagações devem ter ocupado os dias de Leontina em seu ateliê. Cercada de livros, figuras de santos barrocos, ex-votos, obras de artistas que admirava e uma reprodução de Ucello, Leontina desenvolveu uma prática disciplinada que nos deixou milhares de composições como índices do tempo da introspecção criativa.

Leontina teve ateliês em suas casas de São Paulo e Rio de Janeiro, sempre tomando o cuidado de manter seu espaço de trabalho separado do ateliê de Milton Dacosta, seu marido. Em uma época em que o sistema da arte no Brasil começava a se estabelecer e em que o mercado de arte era incipiente, a vivência dos artistas em seus ateliês certamente diferia muito do ritmo empreendedor do artista contemporâneo, mesmo no caso de uma artista como Maria Leontina, que participou de várias edições da Bienal de São Paulo (I, III, IV, V, VI, VII, IX), da XXVI  edição da Bienal de Veneza, do Panorama do MAM (I e II edições), da exposição Projeto Construtivo Brasileiro na Arte, apenas para citar algumas das dezenas de mostras individuais e coletivas a partir das quais a fortuna crítica em torno de sua obra se constituiu, com textos dos grandes nomes da crítica de arte brasileira, como Sergio Milliet, Lourival Gomes Machado, Mario Pedrosa, Frederico de Morais, Ferreira Gullar, Lélia Coelho Frota, Ferreira Gullar, entre outros.

E aqui, nessa breve listagem de episódios marcantes da carreira de Leontina, percebemos o quanto é ilusório tentar reconstruir uma história a partir de fragmentos isolados de uma vida. O tempo não é feito de instantes separados encadeados numa linha cronológica. O tempo é um desaguar, uma duração contínua de um instante ao outro, conforme articulado por Henri Bergson, filósofo citado explicitamente em textos de Hélio Oiticica e que certamente estava no repertório de Ferreira Gullar quando o manifesto Neoconcreto menciona o fluir do tempo na poesia:  “Não se trata, evidentemente, de voltar ao conceito de tempo da poesia discursiva, porque enquanto nesta a linguagem flui em sucessão, na poesia neoconcreta a linguagem se abre em duração.”

Para Henri Bergson, “durar” é atravessar mudanças de estados contínuos. Tudo que tem existência psicológica, tem duração, isto é, transforma-se continuamente, num escoamento sem fim que em nada se assemelha a uma justaposição de estados fixos, a forma preferida com que nosso intelecto tenta compreender o movimento de mudança.

A duração é um fluir, um estado desembocando no outro. O entendimento tem dificuldade em lidar com a continuidade que constrói a mudança, mas Bergson ressalta que o ser humano é dotado não só de intelecto mas também de intuição, capacidade que temos para compreender que a duração é o “próprio tecido de que a realidade é feita”. Aqui certamente a teoria sobre o tempo de Bergson afasta-se da filosofia de Agostinho, para quem o tempo é uma das criações divinas, e assim não pode englobar toda a realidade, pois existe ao lado de outras criações divinas. Em Bergson, a duração é a “elaboração contínua do absolutamente novo”, ideia inconcebível para o teólogo do século IV, para quem toda criação vem de Deus.

Ao pensarmos sobre o tempo como “o tecido de que a realidade é feita” podemos visualizar um véu contentor de todas as possibilidades da realidade, um “todo” contentor de todos os possíveis tempos individualmente vivenciados. A ideia do relacionamento entre o todo e partes que são simultaneamente autônomas e também constituidoras do todo é a estrutura básica das composições da série “Os Jogos e os Enigmas”. Como um tecido de partes intrincadas, ligadas e autônomas, essas pinturas são feitas de blocos de simultaneidades. No lugar da linha do tempo, da sucessão linear, há um “plano do tempo”, com acontecimentos geométricos encadeados tanto no eixo da altura quanto no eixo da largura da tela.

Percebe-se um fundo separado na composição, como uma base neutra por cima da qual desfila uma miríade de combinações de retângulos, triângulos e mais raramente círculos. Nas composições de 1954 desta série ainda é possível identificar figuras humanas atravessadas por este véu de acontecimentos geométricos, como se fossem seres transparentes passando por possibilidades de auto-constituição.

Em “Da Paisagem e do Tempo” não há mais esta sugestão figurativa, e a composição organiza-se ao redor de uma linha horizontal que de tempos em tempos fragmenta-se sem afetar a continuidade do fluxo de formas. É como se as composições desta série fossem extratos horizontais, faixas isoladas daquele todo de “Os jogos e os enigmas”, ou seja, uma das possíveis combinações de partes do todo.

Às vezes  as composições dessas séries apresentam um caráter maquínico e lúdico, principalmente quando as formas circulares predominam. O tempo então é reforçado pela sensação de movimento iminente, de roldanas que giram e acionam um aparato. Assim funcionam as telas da série “Narrativas”, propulsionando com formas circulares as passagens de um retângulo a outro.

É interessante notar que  em A Evolução Criadora, Bergson dedica um capítulo ao “mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista.” O cinematógrafo cria uma ilusão de movimento ao justapor imagens estáticas rapidamente. Nós compreendemos o tempo mais facilmente justapondo instantes, como uma justaposição de cenas isoladas. “Percepção, intelecção, linguagem geralmente procedem assim. Quer se trate de pensar o devir, quer de exprimi-lo, quer mesmo de percebê-lo, não fazemos realmente nada além de acionar uma espécie de cinematógrafo interior.” Paradoxalmente, pensamos a duração, que é movente, através de imagens imóveis.

A série “Episódios” verticaliza a sucessão de acontecimentos geométricos, como numa película de filme, com quadros isolados sucedendo-se num empilhamento dinâmico que não ameaça desmoronar, e sim passar, de cima para baixo ou vice-versa. Em algumas obras dessa série há apenas um bloco vertical com seus acontecimentos interiores. Em outras pinturas também intituladas “Episódios” as faixas verticais sucedem-se lado a lado. Ainda assim, diferem de “Das Paisagens e do Tempo” por evidenciarem as seções verticais mais do que a linha central horizontal.

As “Cenas” isolam ainda mais uma parte do tecido complexo de “Os Jogos e os Enigmas”. Flutuam num vazio, maquinam suas roldanas e nos remetem ao capítulo da arte cinética no construtivismo latino-americano, com Abraham Palatnik, Soto, Cruz-Diez e Le Parc. No entanto, Leontina não está interessada em um cinetismo que afete o corpo e sim num certo “movimento da alma”, na mobilização do intelecto em direção ao pensamento metafísico.

Se a arte concreta tem como pressuposto o uso dos elementos básicos da pintura, como linha e cor, a arte de Leontina tem como pressuposto os elementos básicos da vida: espaço e tempo. A mobilidade então se insinua nestas composições mais vinculadas à espiritualidade do que ao corpo.

Na década de 1960 a série “Formas” remete mais à teoria das formas em Platão do que à forma construtivista. Elas pulsam como essências puras das coisas do mundo. O pastel impede arestas precisas, confere suavidade, sugere uma textura macia, uma flutuação de nuvens de cor, que a seguir esvoaçam como panos nos “Estandartes”, misturas de bandeira e sudário.

O cinetismo espiritual proposto por Leontina nos “Estandartes” remete ao trabalho da artista como orientadora na seção de artes plásticas do Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha, o Juqueri, em 1950, que resultou numa exposição de trabalhos dos internos no MAM-SP no ano seguinte.

A busca da inovação da forma a partir do contato com outras lógicas — do louco, da criança, ou da episteme não-eurocêntrica — é um capítulo importante na história da arte moderna, de Picasso a Dubuffet, incluindo no Brasil artistas como Almir Mavignier, Lygia Clark e Maria Leontina, além das pesquisas de Nise da Silveira e Lula Wanderley.

Como já apontado por Paulo Herkenhoff e Paulo Venâncio Filho, é possível fazer uma leitura dos estandartes de Leontina em paralelo com produções de Arthur Bispo do Rosário a partir da ideia de vestes para aceder a outras dimensões. A espiritualidade e a lógica alternativa ao funcionamento psíquico padrão do tempo da hiper-produtividade são mutuamente reveladoras. Nesses dois enigmas estão temas como a passagem, as dimensões, as temporalidades, a iluminação, a acese.

Os estandartes referem-se a panos mas também sugerem membranas e portais. Em alguns o centro circular é luminoso, mais profundo na ilusão espacial da tela. Vitrais do final dos anos 1960 corroboram a importância da luz e da passagem, explícitas na série “Umbrais/Altares”.

Estariam as Orantes” da volta à figuração dos anos 1960 compondo os pensamentos para as “Páginas” em branco? São um retorno das Sant’Anas dos anos 1950 ensinando a próxima geração a ler o mundo? Uma das orantes de 1966 olha para uma flor com extrema atenção. O tempo corre e o olhar segue fixo, buscando a explicação do enigma.

Afinal, qual a diferença entre conhecimento e espiritualidade?

Paula Braga, 2017